Cardeal José Saraiva Martins - 2014/10/13
Em 1 de abril de 2003 o Cardeal José Saraiva Martins, Prefeito da Congregação para as Causas
dos Santos, fez uma profunda reflexão a respeito das aparições da
Virgem Maria em Fátima, aos pastores Jacinta, Francisco e Lúcia, com
especial enfoque na piedosa devoção tão agradável à Mãe de Deus: o
Rosário.
"Recitar o Rosário todos os dias
Em 13 de Maio de 1982, João Paulo II
peregrino em Fátima um ano após o atentado de que fora alvo na Praça de
São Pedro, exprimia-se da seguinte forma a respeito da mensagem
transmitida pela Virgem Maria a Jacinta, Francisco e Lúcia: "Se a Igreja
acolheu a mensagem de Fátima, foi sobretudo porque ela contém uma
verdade e uma chamada que, no seu conteúdo fundamental, são a verdade e a
chamada do próprio Evangelho".
Estas palavras do Papa, que com tanto
vigor e autoridade fez ressoar a mensagem dada pela Virgem Maria em
Fátima, no alvorecer do século passado, também no começo deste século e
do terceiro milénio cristão, podem ser também um convite a acolher
aquela apologia do Rosário que, em Fátima, encontrou um centro propulsor
para toda a Igreja e para o mundo.
Parece que podemos dizer que Fátima e o
Rosário são quase um sinónimo, e de facto assim é. Sabemos que as três
crianças, depois do seu encontro com um Anjo do Senhor, seguiram
fielmente as instruções que ele lhes tinha dado e intensificaram o seu
recurso à oração de acordo com o que tinham recebido: adoração da
Santíssima Trindade juntamente com a oferta do preciosíssimo Corpo,
Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo, presente em todos os
Tabernáculos do mundo, em reparação das ofensas, dos sacrilégios e da
indiferença com que é ofendido. O Anjo também lhes tinha dito para
realizar esta oferta pelos méritos infinitos do Sagrado Coração e do Coração Imaculado de Maria, e para pedir com isso a conversão dos pobres pecadores.
Sabemos que a 13 de Maio de 1917, que
era domingo, enquanto os três levavam o rebanho a pastar na Cova da
Iria, foram surpreendidos pela aparição de "uma Senhora vestida de
branco mais brilhante que o sol", que lhes disse: ""Não receeis. Não vos
faço mal". "De onde é você?", disse Lúcia. "Sou do céu". "E que quer de
mim?". "Venho pedir-vos para virdes aqui seis meses consecutivos, no
dia 13, a esta mesma hora. Depois dir-vos-ei quem sou e o que quero.
Depois, voltarei aqui novamente pela sétima vez". "E também eu vou para o
Céu?". "Sim, irás". "E a Jacinta?". "Também". "E Francisco?". "Sim. Mas
deve recitar muitos Rosários...". "Quereis oferecer-vos a Deus para
suportar todos os sofrimentos que Ele vos quiser mandar, em reparação
pelos pecadores que O ofendem, e de súplica pela conversão dos
pecadores?". "Sim, queremos".
Então, num impulso íntimo que nos foi
comunicado, ajoelhámo-nos e repetimos intimamente: "Santíssima Trindade,
eu adoro-Vos. Meu Deus, meu Deus, eu amo-Vos no Santíssimo Sacramento".
Passados os primeiros momentos, Nossa Senhora acrescentou: "Recitai o
Rosário todos os dias para obter a paz para o mundo e o fim da guerra".
Depois começou a elevar-se serenamente, subindo em direcção ao
oriente..." (em Memórias da Irmã Lúcia).
A resposta dada por aquelas pequenas
crianças à recomendação que a "branca Senhora" lhes tinha feito, foi uma
sincera e frequente recitação do Santo Rosário.
Que mudança em relação ao que eles
faziam em tempos anteriores quando na simplicidade típica das crianças
para terem mais tempo para brincar, mesmo recitando habitualmente
algumas orações depois de uma pequena merenda, se contentavam apenas com
dizer "Ave Maria" e "Pai Nosso", omitindo o resto destas orações!".
Desta forma, eles chegavam num instante ao fim, e podiam recomeçar as
suas brincadeiras.
No dia 13 de Junho, fiel ao encontro marcado com as crianças, a "branca Senhora" apresentou-se
de novo e disse-lhes: "Quero que venhais aqui no dia 13 do próximo mês,
que reciteis o Rosário todos os dias". Quando Lúcia lhe pediu que os
levasse todos para o Céu, a Senhora respondeu: "Sim; Jacinta e
Francisco, levo-os em breve, mas tu permaneces aqui algum tempo. Jesus
quer servir-se de ti para que me dês a conhecer e me faças amar. Quer
estabelecer no mundo a devoção ao Meu Coração Imaculado. A quem a
aceitar, prometo a salvação; e estas almas serão amadas por Deus como
flores destinadas por mim para honrar o seu trono". "Vou ficar aqui
sozinha?" perguntou entristecida. "Não, filha. E tu sofres muito? Não
desanimes. Eu nunca te abandonarei. O meu Coração será o teu refúgio e o
caminho que te guiará até Deus".
Quando pronunciou estas últimas
palavras, abriu as mãos e transmitiu-nos, pela segunda vez, o reflexo
daquela luz imensa, na qual nos víamos como que imersos em Deus. Parecia
que Francisco e Jacinta estavam naquela parte de luz que se elevava
para o Céu, e eu naquela parte que se difundia na terra. Diante da palma
da mão direita de Nossa Senhora, havia um coração coroado de espinhos
que pareciam cravados. Compreendemos que era o Coração Imaculado de
Maria, ultrajado pelos pecados da humanidade, que pedia a reparação"
(das Memórias da Irmã Lúcia).
Em 13 de Julho Nossa Senhora apareceu
às crianças, que desta vez não estavam sozinhas, mas rodeadas por 3 ou 4
mil pessoas, que acorreram com a curiosidade de ver o que acontecia: De
facto, apesar do compromisso que as crianças tinham assumido entre si
para não revelar nada a ninguém, a pequena Jacinta dissera alguma coisa
em relação ao próximo encontro com a "branca Senhora" e a notícia
difundira-se rapidamente nos arredores.
Foi
durante aquela aparição que Nossa Senhora disse às três crianças:
"Quero que venhais aqui no dia 13 do próximo mês, que continueis a
recitar o Rosário todos os dias em honra de Nossa Senhora do Rosário,
para obter a paz no mundo e o fim da guerra, porque só ela os poderá
ajudar".
"Decidimos então rezar o nosso Rosário"
Os três meninos não só aceitaram este
pedido de Nossa Senhora, mas compreenderam que era com a oração assídua e
com muitos sacrifícios que contribuiriam para a conversão dos
pecadores, para a paz no mundo, então atormentado pelos horrores da
Primeira Guerra Mundial, e para a mudança do que acontecia na Rússia
ateia e comunista.
A recitação frequente do Rosário
tornou-se para eles uma necessidade interior que os estimulou a fazê-lo
com fidelidade precisa, mesmo quando a situação se tornou para eles
trágica e até cheia de apreensão e receio. Com efeito, estando naquela
época Portugal dominado por governos maçónicos e abertamente
anti-religiosos, o Administrador do Município de Vila Nova de Ourém
(área na qual viviam as famílias das três crianças), decidiu pôr fim
àquele movimento religioso que se tinha desenvolvido por causa deles. Na
manhã de 13 de Agosto ele foi a Fátima e levou embora consigo os três
pastorinhos para Vila Nova de Ourém. Ali aprisionou-os alternadamente na
sua casa, ou na prisão municipal, ameaçando-os seriamente também de os
matar tudo isto com a intenção de obter que eles lhe revelassem o
segredo que Nossa Senhora lhes confiara. "Na prisão, os detidos deram
aos Pastorinhos o seguinte conselho: "Dizei ao Presidente da Câmara esse
segredo! Que vos importa se aquela Senhora não quer!" "Dizê-lo, não!",
respondeu Jacinta com vivacidade; "prefiro morrer!". "Decidimos então
recitar o nosso Rosário. Jacinta mostra uma medalha, que trazia ao
peito, e pede a um preso que a pendure num prego da parede e, de joelhos
diante da medalha, começamos a rezar. Os presos rezaram connosco, como
sabiam; pelo menos permaneceram ajoelhados".
Quando Francisco se apercebeu que um dos
presos estava ajoelhado com o boné na cabeça, aproximou-se dele e
disse-lhe: "Você, se quer rezar, deve tirar o boné". E o pobre homem
deu-lho imediatamente e Francisco poisou-o sobre um banco.
São precisamente as crianças que guiam a recitação do Rosário
Do que até agora recordamos a propósito
dos factos que aconteceram nos meses de Maio e Agosto de 1917 emerge um
facto que deve ser realçado, que é o seguinte: tratava-se de três
crianças, e foi a elas que Nossa Senhora se quis manifestar. Não há nada
de estranho nisto, se se considera que Nossa Senhora é a Mãe d'Aquele
que, tendo-Se feito homem, tendo-Se tornado pequenino para viver entre
nós, demonstrou abertamente o Seu amor pelas crianças e manifestou
também claramente que apraz a Deus revelar-Se aos pequeninos: Jesus
"estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo e disse:
"Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas
coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos. Sim,
Pai, porque tudo isso foi do Teu agrado" (Lc 10, 21).
Merece uma especial atenção o facto de que são precisamente as crianças que guiam a recitação do Rosário.
Elas fizeram-no antes de mais ajudando-se mutuamente para cumprir o que Nossa Senhora lhes tinha pedido.
Elas cumpriram isso sem respeito humano e
sem medo, mesmo quando se encontravam entre os encarcerados, e entre as
pessoas de pouca reputação e educação.
Elas fizeram-no também na presença
daquele numeroso grupo de pessoas curiosas que as tinham seguido com a
intenção de verem, também eles, aquele algo de extraordinário que estava
para acontecer.
Mas também em seguida, em todas as
partes do mundo, foi com o convite que nos foi feito por aquelas
crianças através da única que ainda vive, a Irmã Lúcia que no mundo
inteiro muitas pessoas, muitas famílias se reúnem para recitar o
Rosário, tendo presentes de modo especial as intenções que Nossa Senhora
recomendou aos pastorinhos de Fátima.
Quem teve a sorte de ir a Fátima ficou sem dúvida surpreendido ao ver como milhares de fiéis, dos quais muitos peregrinos
provenientes de todas as partes do mundo, se reúnem na basílica, e
depois à volta dos túmulos de Francisco e de Jacinta, para rezar com
fervor e fazendo deslizar entre os seus dedos as contas do Rosário.
Depois, quem teve a graça de estar em Fátima por ocasião da Beatificação
dos dois pastorinhos mais pequeninos, que o Santo Padre quis fazer em
13 de Maio de 2000, precisamente lá, onde a Virgem Maria se lhes
manifestou, não pode esquecer o cenário comovedor da recitação nocturna
do Rosário na noite que antecedeu a função presidida pelo Pontífice.
Quem não ficou comovido ao ouvir a voz
daquelas centenas de fiéis que pronunciavam juntos as palavras da
Ave-Maria, uma dezena depois da outra? Quem é que não se sentiu
envolvido naquela comovedora súplica quando, no final de cada dezena,
via surgir, como que uma vaga, a luz das velas que os fiéis levantavam,
enquanto o cântico bem conhecido "Ave, Ave" ressoava no silêncio da
noite?
Mas, depois, quem pode ignorar todas as
pessoas e famílias que, mesmo não estando em Fátima, espalhadas por todo
o mundo, especialmente nos Países onde reina uma perseguição religiosa,
se reúnem para recitar o Rosário e fazem-no porque também receberam o
convite que os pastorinhos de Fátima fizeram a todas as pessoas de boa
vontade?
Fátima e o Rosário são palavras inseparáveis
Fátima e o Rosário, as crianças de Fátima e Nossa Senhora são palavras profunda e inseparavelmente unidas entre si.
É assim que também hoje, sobretudo nos
nossos dias, depois do premente apelo que nos foi dirigido pelo Santo
Padre João Paulo II, fiel devoto da Virgem de Fátima, se reza com
fervor, suplicando a Nossa Senhora que obtenha de Deus que a guerra seja
esconjurada, que a paz reine e não seja perturbada pelo fragor das
armas de destruição, pelos gritos de sofrimento
de quantos estão para morrer, vítimas de um conflito inútil, e pelas
lágrimas dos que choram os seus entes queridos, mortos por uma guerra
insensata.
A este ponto, é necessário realçar outro elemento daquele binómio que associa os pastorinhos ao Rosário.
Foi precisamente na escuta do convite
que lhes foi feito por Nossa Senhora e do que ela recomendava, que os
pastorinhos de Fátima não só recitaram com grande fidelidade o Rosário,
mas intensificaram o espírito de sacrifício oferecendo os seus
sacrifícios e os notáveis sofrimentos físicos e morais segundo as
intenções que a "branca Senhora" lhes tinha recomendado: adorar e amar o
Coração de Jesus, presente na Eucaristia e tão ofendido pelos pecados
da humanidade rezar e sacrificar-se pela conversão dos pecadores.
São precisamente as duas crianças de
Fátima, beatificadas pelo actual Pontífice, que nos dão um maravilhoso
exemplo da maneira como responder ao apelo de Nossa Senhora, e que o
Papa João Paulo II renova em seu nome nos nossos dias. É suficiente
recordar que, quando em Outubro de 1917 Francisco começara a frequentar a
escola elementar no edifício que se encontrava junto da escola
paroquial, sabendo do que a "branca Senhora" tinha dito, que o seu fim
havia de chegar depressa, costumava permanecer longamente em oração
diante de "Jesus escondido", como ele chamava Aquele que está presente
no tabernáculo sob os véus eucarísticos.
Recitando o Rosário e reflectindo sobre
os "mistérios dolorosos", ele compreendeu "com o coração" o que Jesus
devia ter sofrido devido à traição de Judas e ao abandono em que se
sentiu por parte dos seus discípulos. Francisco, para reparar as feridas
infligidas ao coração de Jesus, dizia à prima mais velha, Lúcia: "Olha!
Tu vai à escola. Eu fico aqui na Igreja, perto de Jesus escondido para
lhe fazer companhia". E o Senhor chamou-o muito cedo para si (Abril de
1919), depois de ter aceite o seu amor reparador.
Pouco
tempo depois, no Verão do mesmo ano, a pequena Jacinta, também ela
atingida pela febre espanhola, afectada por uma pleurisia purulenta,
sofria dores lancinantes e chorava porque já não tinha ao seu lado o
irmão Francisco do qual gostava muito. Ao tomar conhecimento de que
devia ser internada primeiro no hospital de Vila Nova de Ourém, e depois
em Lisboa, disse à prima Lúcia: "Nossa Senhora quer que eu vá para dois
hospitais, mas não para me curar, é para sofrer mais por amor ao Senhor
e pelos pecadores". E depois, quando estava no hospital, entre dores
atrozes e com a coroa do Rosário entre as mãos murmurava: "Oh, Jesus,
agora podes converter muitos pecadores, porque este sacrifício é muito
grande".
No dia 20 de Fevereiro, por volta das
dez e meia da noite, faleceu tranquilamente, com a coroa do Rosário nas
mãos e, ainda mais, no coração.
Apraz-me concluir com a observação que
Lúcia nos transmite no seu último livro "Os apelos da mensagem de
Fátima", quando diz: "Para ir para o céu, não é condição indispensável
recitar muitos Rosários no sentido estreito da palavra, mas sim, rezar
muito; naturalmente para aquelas pobres crianças recitar o rosário todos
os dias era a forma de oração mais acessível, assim como é ainda hoje
para a maior parte das pessoas, e não há dúvida de que dificilmente
alguém se salva se não rezar" (Irmã Lúcia, em Os apelos de Fátima,
Libreria Editrice Vaticana, 2001, pág. 116-117).