O Catecismo
da Igreja Católica ensina que a obra da criação se nos apresenta sob a
forma de vestígios do próprio Criador,[1] a fim de a inteligência poder
relacionar as coisas visíveis com o invisível.
Este contínuo apelo daquilo que nos rodeia à sua causa e sustento, leva o homem a sair de si para deixar-se surpreender e enlevar,
através de experiências estéticas que lhe falam no mais íntimo de
realidades superiores, metafísicas, transcendentais.
Diversos autores deixaram testemunhos
surpreendentes em torno de especulações perante as múltiplas
manifestações de Deus, nas suas criaturas. Nesse sentido, há um célebre
episódio de Napoleão no qual, certa noite, interrompe uma discussão
materialista entre soldados a fim de apontar as cintilantes estrelas do
céu e questioná-los: "Vós podeis falar quanto tempo quiserdes, senhores,
mas quem terá feito tudo isso?".[2]
Não só diante da magnanimidade da
Criação houve reações. Também a ordem e complexidade do Universo
levariam Newton, ou mesmo Voltaire, a afirmarem que não há relógio sem
relojoeiro,[3] reportando-se à necessidade de um Criador, ainda que
envolto em concepções filosóficas distantes da Teologia cristã.
Entretanto, encontramos ainda no homem,
em meio ao secularismo de hoje, um conjunto considerável de
interrogantes e disposições que o levam a sair de si e ter a capacidade
de se maravilhar com os vestígios de Deus.[4]
Já São Tomás de Aquino fazia uma
interessante reflexão ao considerar o 13º Capítulo do Livro da
Sabedoria,[5] servindo-se para isso da seguinte imagem: Se alguém indo a
uma casa e desde a porta fosse sentindo calor e cada vez mais nela
penetrasse e mais calor sentisse, evidentemente perceberia que havia
fogo no seu interior, mesmo que não estivesse vendo o fogo. Acontece o
mesmo conosco, ao considerarmos as coisas deste mundo. Todas as coisas
estão ordenadas conforme diversos graus de beleza e de nobreza, e quanto
mais próximas de Deus, tanto melhores e mais belas.[6]
Vemos, desta forma, o quanto a beleza
pode ser comparada a uma chama. Quem será insensível ao seu calor? Este
abrasa e arrebata, alça-nos a considerações salutares, tira-nos da nossa
condição, do "eu".
Esta especulação tinha sido feita por
Platão, em Fedro, e não foi estranha a Santo Agostinho. O então Cardeal
Ratzinger aproveitou os escritos de ambos para comparar o belo a uma
flecha capaz de ferir o homem no seu íntimo, para desse modo "lhe
conferir asas e o elevar às alturas".[7]
Não será esta uma solução para o mundo
materialista e relativista no qual vivemos? Não se apresentará à Igreja
como um instrumento preciosíssimo, desde sempre ao seu alcance, quer
através da Liturgia, quer através da arte sacra?
Mons. Luigi Giussani já o reconhecia ao
propor, certa vez, em seus exercícios: "Noi dobbiamo lottare per la
bellezza. Perché senza la bellezza non si vive. E questa lotta deve
investire ogni particolare: altrimenti come faremo un giorno a riempire
la piazza San Pietro?".[8]
"A beleza salvará o mundo", propôs
Dostoiévski,[9] numa frase múltiplas vezes utilizada em variadas
reflexões. O próprio Papa João Paulo II citou-a na sua Carta aos
Artistas (1999), e o Pontifício Conselho para a Cultura viria a
desenvolvê-la no excelente documento elaborado em torno deste assunto, que se intitula Via Pulchritudinis.
Entretanto, cabe aqui realizar uma
importante precisão, de acordo com estes dois documentos: não se trata
de qualquer beleza, capaz de salvar o mundo, como se coubesse ao
conceito, mesmo com todo seu valor, qualquer força própria e redentora. É
para Cristo, "o mais belo dos filhos dos homens" (Sl 44, 3), que o
nosso pensamento deve remeter; Aquele em cuja face a glória de Deus
resplandece (cf. 2Cor 4, 6).
Encontra-se traçada a pedagógica via que
nos conduzirá à fonte absoluta da pulcritude, de onde dimana a
relativa, os vestígios, através dos quais aprendemos "quão mais belo que
tudo é o Senhor, o próprio autor da beleza" (Sb 13, 3). Porque, como
escreveu Bento XVI, quando ainda cardeal: "nada há que melhor nos possa
pôr em contacto com a beleza do próprio Cristo do que o mundo do Belo
criado pela fé, bem como a luz resplandecente no rosto dos santos,
através da qual se torna visível a Sua própria Luz".[10]
Por Padre José Victorino de Andrade, EP
Editorial. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 3-5.
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