Igreja

Rádio GOTHMLP

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

II Domingo de Advento (Mc 1,1-8)

«Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. Está escrito no Livro do profeta Isaías: “Eis que envio meu mensageiro à tua frente, para preparar o teu caminho. Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!”. Foi assim que João Batista apareceu no deserto, pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados. Toda a região da Judéia e todos os moradores de Jerusalém iam ao seu encontro. Confessavam seus pecados e João os batizava no rio Jordão. João se vestia com uma capa de pelos de camelo e comia gafanhotos e mel do campo. E pregava, dizendo: “Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo».

Trilhar o caminho do Advento é como realinhar as nossas vidas, sincronizar o nosso coração com o coração de Jesus. É um período no qual podemos, mais uma vez, fazer o ponto da nossa situação espiritual; é a possibilidade de reafirmar a Deus o que Ele é para nós e o que nós desejamos ser para Ele. A vida cotidiana tem suas regras e assim o mundo que nos cerca, com seus ritmos e exigências que nem sempre nos deixam espaço para sermos o que desejamos ser e assim, de repente, nos vemos arrastados por coisas que “precisamos fazer”, que “tomam conta da gente”. Até a dimensão espiritual acaba correndo o risco de transformar-se numa série de atos mais ou menos habituais, parênteses arrancadas à força a um mundo que nos arrasta fora de nós mesmos. Em modo análogo, se bem diferente, em seu contexto, parece rever nisto as situações em que foram pronunciadas as palavras proféticas que abrem o nosso Evangelho: «Eis que envio meu mensageiro à tua frente, para preparar o teu caminho. Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!’». Tais palavras, que formam a moldura do texto, são resultados da fusão de duas citações (Ml 3,1 e Is 40,3) pronunciadas num momento de grande significado para Israel e podem nos ajudar para a compreensão do trecho de hoje.
Assim como todo homem de fé corre o risco de cair na tentação de acomodar-se, principalmente quando as coisas estão dando certo, quando parece que encontramos o “equilíbrio”, quando ajeitamos as coisas de tal modo que possam ser mais eficientes, também Israel havia deixado de lado tudo quanto a experiência de provisoriedade e da dependência lhe havia ensinado ao longo da caminhada do deserto. A capacidade de saber esperar, a confiança na Providência, a súplica desesperada, o medo da própria fragilidade diante das investidas das tribos do deserto, tudo isto tinha deixado seu lugar à segurança de baluartes, à organização política, ao comércio. O “shalom”, uma estranha mistura entre bem-estar e convicção de que a prosperidade seja o sinal da benção de Deus, era o intuito de todo bom judeu. A liturgia era tida como a maneira mais oportuna de agradar a Deus e o Templo o símbolo da estabilidade da escolha que Deus fizera quanto a Israel. A estabilidade, a prosperidade e a segurança haviam trazido consigo também o seu veneno: a distância com Deus.
Providencialmente para a fé, eventos históricos fizeram despencar de repente tais seguranças, precipitando Israel na mais angustiosa das perguntas: «Terá Deus nos abandonado?  A sua promessa terá falhado?» (Sal 77,8). Em pouco tempo tudo o que formava a certeza de um povo, foi esmagado sob as novas armas usadas pelos Assírios e suas técnicas de cerco. O salmista descreve assim os sentimentos de Israel: «Atearam fogo ao teu santuário; profanaram, arrasando-a até ao chão, a morada do teu nome. Disseram no seu coração: “Acabemos com eles de uma vez”. Queimaram todos os lugares santos de Deus. Já não vemos os nossos símbolos; já não há profeta; nem, entre nós, quem saiba até quando…» (Sal 74,7s). Uma parte considerável de Israel foi conduzida em estado de escravidão para uma terra estrangeira, Babilônia. Muitos esqueceram sua fé, grande parte perdeu a sua identidade, mas uma pequena porção continuou esperançosa na fidelidade de Deus. A estes se dirigem os profetas com as palavras que lemos, palavras de esperança e certeza de que Deus é fiel mesmo quando isto não seja tão evidente. Eram palavras de esperança de voltar à própria Terra, prometida, símbolo da fidelidade de Deus.
            O nosso Evangelista retoma de propósito este contexto, notamos, todavia uma mudança: o texto de Isaías fala do “caminho de Jahvé”. Ora com esta expressão se entendia a Lei, o caminho de Jahvé era constituído pela obediência estrita à sua palavra manifestada na Torah. Para Marcos o caminho do Senhor não é uma série de prescrições, por quanto corretas forem, mas sim uma pessoa: o Senhor, Jesus. O antigo Testamento findava não somente porque Jesus estava vindo ao mundo, mas porque terminava uma maneira de seguir a Deus; uma Lei sempre e só pode nos dizer se estamos certos ou errados, nada mais do que isto. É a “maldição da Lei” da qual Paulo fala, já que nunca uma regra pode gerar amor e, pior, quando nos faz constatar que “estamos certos” enraíza em nós o pior dos inimigos do Reino: o orgulho de estar no certo. Seguir uma pessoa é outra coisa! A pessoa é um mistério em si mesma, quanto mais uma Pessoa divina como Jesus! Seguir uma pessoa implica em contínuos atos de renovado amor, exige contínua atenção aos movimentos do espírito da pessoa amada, requer uma incrível flexibilidade e mais e mais... mas, em contrapartida gera amor e, se o Amado for infinito, também o amor com o qual o homem sabe amar poderá ser conduzido ao Infinito, a Deus. Estamos falando de um contínuo movimento que não deixa espaço para se acomodar, para rotular pessoas e coisas, para cristalizar sentimentos através de gestos rotineiros. Nisto não está o amor. Trata-se de uma dimensão renovada da fé.
            Para podermos entender o que o Evangelista nos diz respeito a esta nova maneira de ver a relação com Deus, creio que precisamos dar um olhar sobre o ambiente recriado em sua narração, ambiente que nos ajuda a entender as expressões: “batismo em água” e “batismo em espírito”. 
Propriamente o Jordão não atravessa nenhuma região desértica, logo a colocação do “deserto” é intencional. Não será possível ver nisto uma sugestão sobre qual deve ser o caminho para reencontrar o sentido da autêntica promessa? Os judeus haviam esquecido o “deserto” quando a eficiência e a segurança haviam tomado grande parte de seus corações. Quantos valores Deus lhes havia ensinado a cada vez que a Ele recorriam  na atitude de quem espera sem pretender! Mas a auto-suficiência tirara tudo, tudo o que de melhor eles haviam aprendido; esta era a mágoa dos grandes Profetas. O Batista, como o Profeta ao qual apontam os próprios textos de Malaquias e Isaías deixa a sua indicação: voltem ao “deserto”! Recordem quando vocês sentiam-se necessitados de Deus, recordem os vossos sentimentos de oração suplicante e confiante, dos laços de recíproca entrega daqueles dias! Voltem ao essencial! Voltem ao essencial se vocês quiserem conhecer todo o alcance da Promessa, a qual não se resume num “território”, mas numa “terra” no sentido próprio da cultura médio-oriental: um lugar onde poder viver e realizar os próprios sonhos. Jesus é a Terra que cada pessoa pode sentir como “sua terra”, lugar para poder ser aquele homem que Deus o imaginou, feliz e realizado em harmonia consigo mesmo, com os outros homens e com Deus. O Jordão representará o limite entre as duas mentalidades e os dois tempos; último dos profetas, o Batista só exercerá seu ministério “além” do Jordão, como o grande Moisés que conduziu seu povo até o Jordão mas não pode atravessá-lo, como fez Josué e o povo “renovado” após uma longa marcha no deserto. Aquém do Jordão é o “lugar de Jesus” é a Terra prometida, onde o Senhor agirá desde a Galiléia até Jerusalém para os homens de todos os povos que desejarem seguir o “seu caminho”. Eis que podemos assim compreender melhor as duas expressões das quais falamos. Batizar na água indica aquilo que a antiga mentalidade pode fazer, só aquilo que pode ser realizado na mentalidade de quem fica “além” do Jordão. Não é mal, ao contrário, é já um primeiro importantíssimo passo necessário para o segundo. A “água” indica o caminho que o homem pode fazer reconhecendo a verdade sobre si mesmo. A lei pode perfeitamente ajudar o homem a dizer a verdade sobre si mesmo e isto é já muito, pois sobre a verdade se pode construir, sobre a mentira, o escondimento, o medo de se descobrir diferente daquilo que se imagina, sobre isto não se constrói nada porque a verdade é liberdade. Batizar na “água” significa ter a coragem de “mergulhar” na verdade, era somente isto que o Batista pedia a quem o quisesse.
O segundo passo, é obra de Jesus, é fruto da adesão incondicional a Ele sem regressos. Quando Lhe damos a mão o Senhor a toma, como dirá anos depois a Pedro: «alguém te cingirá e te conduzirá onde você não havia desejado», toma a nossa mão e pede inúmeros e sutis “sim”. Quando formos capazes de “mergulhar” no Senhor (a mais antiga fórmula batismal dizia assim: “batizar no Senhor”) progressivamente a nossa alma será incorporada à Dele, o nosso modo de ver o mundo será vinculado ao Dele, nosso espírito será fundido com o Dele assim como a videira e os ramos, sem confusão. Jesus falará do “seu batismo” como uma ação constante (Mc 10,38), um progresso de adesão incondicional ao Pai numa comunhão buscada e escolhida a cada dia: esta é a conversão, a escolha de estar disposto a se renovar, dinamicamente, por amor dizendo infinitos “sim” a quem tomou a nossa mão um dia. 
Jesus é a nossa terra, é possível realmente construir Nele a nossa felicidade, mas é preciso que saibamos voltar e valorizar o deserto, aquelas situações das quais, instintivamente, fugiríamos; situações em que parece que Deus tenha escondido o seu rosto outrora sempre presente diante de nós; situações em que a pergunta é infinitamente superior à resposta. O deserto interior toca todo homem em que Deus deposita o seu olhar com carinho especial, o vazio de sua presença é o que mais aflige o homem que ama Deus e que por Ele se sente amado. É aqui que nasce a profunda tentação de se sentir abandonados, mas é aqui que também se descobre a diferença entre o que é essencial e o que não o é, entre o que nunca passa e aquilo que é  forma, comportamento religioso, convicção privada... Sem o deserto não há um coração puro. 

Um bom domingo,
Pe. Carlo

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